Na semana anterior à ecografia ("E se? A mim não...") eu fora à consulta anual de rotina. Como sempre, ia tranquila. Era apenas mais uma consulta anual de rotina com a minha médica de família.
Gosto da minha médica de família. Já a conheço há 12 anos. Atenciosa e dedicada, conhece os meus receios, os meus medos. Assistiu às minhas alegrias e às minhas penas. Ela sabe que à tona eu pareço muito forte. Ela também sabe que, basta mergulhar um pouco e aí já não passo de uma muito fraca...
"Está tudo bem." disse sorrindo. "Tens aqui um carocito... Mas deve ser um quistozinho ou o teu fibroadenoma que cresceu... Vamos fazer uma ecografia só para ver..." Sorrindo, sempre sorrindo, transmitindo-me mais uma vez aquela confiança cega que eu aprendi a ter nela... "E já agora vamos fazer umas analises, já não fazes há algum tempo... Já passaste dos 40, convém fazer de vez em quando... Este ano fazemos tudo!" Sempre sorrindo... Tão sorrindo que eu nem desconfiei...
Sai do Centro de Saúde com um molho de exames na mão. Dobrei as folhas, guardei-as na mochila... E de repente, afastando-me lentamente do sorriso tranquilizador da minha médica, senti uma súbita e inexplicável vontade de chorar...
O processo é lento... Tão lento que parece irreal. Imaginário. Ficção.
Comparo os últimos meses da minha vida a uma série de televisão. A cada novo episódio que começa, sinto o drama e a ansiedade estilhaçarem-me por dentro... Quando acaba o episódio, desligo a televisão.
Lentamente esbate-se a sua lembrança na minha memória... O medo desaparece e volta a doce ilusão da tranquilidade. Delicio-me... Mas algures sei que é só até começar o próximo episódio.
A maternidade presenteou-me com uma força que eu nunca sonhara um dia vir a ter... Tornei-me uma mãe determinada, decidida, invencível... Arrogante até!
Jovem divorciada, sozinha com dois filhos pequenos para criar, construí uma gigantesca fortaleza à volta do meu ninho... Diariamente subia à torre mais alta e do seu topo gritava aos quatro ventos para quem quisesse ouvir: "Nunca vou ficar doente! Não tenho tempo para ficar doente! Não posso ficar doente e não vou ficar doente!
E não é que resultava? Gripes, constipações ou outras lesões? Fugiam de mim aterrorizadas qual soldados desarmados num campo de batalha! Eu vencia: eu tinha o poder! Eu tinha a arrogância de acreditar que era eu que comandava!
Hoje sei que essa doce arrogância escondia apenas o meu maior medo...
"A mim não..." será um daqueles pensamentos típicos, usuais, banais, vulgares, não valorizados, não ponderados e outros "ados" mais, repetidos vezes e vezes sem conta que afinal passa pela cabeça de mulheres?
Apesar de toda a divulgação e campanhas de prevenção, será a realidade do aumento da percentagem de Cancros de Mama ainda desconhecida? Desconhecida ou simplesmente confortavelmente ignorada?
"A mim não..." será um pensamento que frequentemente passa pela cabeça das mulheres quando vão fazer ecografia ou mamografia?
Despiu a camisola olhando o rosto familiar refletido no espelho. Fixou os olhos escuros e brilhantes que meticulosamente a miravam do outro lado... E aí, só aí, pela primeira vez pensou: "E se...?"
Sorriu oscilando levemente o rosto... Sentiu nas faces o acariciar prazeroso do cabelo longo e suave e num gesto quase consciente de negação libertou finalmente a sonora voz interior reprimida e silenciosa: "Claro que não! Disparate... A mim? Que absurdo... Impossível! Claro que não!"
Vestiu a bata que lhe fora entregue uns minutos antes e, antes de sair do vestiário, voltou-se uma ultima vez e novamente olhou os olhos escuros refletidos no espelho... "A mim não... A mim não..."
Ontem comprei uma forma para bolos. Uma simples forma para bolos daquelas "desmontáveis"... Já estava há uns anos, uns largos anos, na minha "Lista de coisas que quero comprar". Mas como tenho 4 formas para bolos que raramente uso, aliás 5 se contar também a do ursinho em silicone que usava para fazer bolos de chocolate quando os meus meninos eram pequeninos, ainda não a tinha comprado...
Ontem estava ela na prateleira da loja e como que me chamou: "Hei! Se sempre quiseste uma forma "desmontável" como eu, compra-me agora! Compra-me já! Para de adiar!" E cedi ao impulso e comprei-a! E ontem à noite fiz um bolo nela. Um bolo de abacaxi com farinha de coco. Um bolo de abacaxi com farinha de coco que foi fácil de desenformar.
Há duas semanas comprei um wok. Sim o wok também estava na minha "Lista de coisas que quero comprar" mas que por não ser verdadeiramente necessário, foi também sempre adiado e substituído por coisas mais necessárias...
Que mais há na minha lista? As t-shirts Susana Gateira... As aulas de dança... As leggins com "risquinha"... O curso de pintura... Os elásticos para o cabelo... As aulas de piano... As sapatilhas Adidas Brancas que voltaram a ficar na moda... Novos lenços. Sim gosto de lenços ao pescoço, mas tenho 4 que como já estão demodés deixei de usar... Os pratos rasos. Sim comprei na semana passada uns novos pratos de sopa, mas ainda faltam os rasos...
Adiar... Sempre a adiar... A adiar enquanto os dias, os meses, os anos, simplesmente a vida, passam...
