Estava eu para aqui pensando que sou uma pessoa dinâmica por natureza e que sempre tive alguma dificuldade em lidar com tempos mortos...
O que mais me assusta numa situação de pós-cirurgia? Bom é verdade que obviamente me preocupam todos os efeitos secundários, físicos e/ou psicológicos, que poderão eventualmente surgir... Mas confesso que o que mais me aterroriza mesmo é o ficar parada. Sim: oficar parada!
Dizem-me que levará algum tempo a recuperar o braço do lado da mama operada... Dizem-me que durante algum tempo não poderei fazer força... E eu pergunto-me: "O que vou fazer eu durante esse tempo?" ou "Quanto tempo demorará até recuperar a minha vida normal?" Alias: "O que será depois a minha vida normal?"
Pergunto-me se não serei louca por pensar em coisas tão absurdamente práticas quando deveria estar preocupada apenas com a cura e a sobrevivência? Mas como posso eu considerar-me uma sobrevivente se nunca me senti à beira da morte... Ou como posso eu considerar-me curada se nunca me senti doente?
"Vou tomar outro café!" disse a Márcia levantando-se e dirigindo-se para a porta. Ela trabalha comigo há pouco mais de um mês. É jovem, saiu agora da faculdade e este é o seu primeiro emprego.
"Outro?" Respondi eu surpreendida. "Mas afinal quantos cafés é que tu tomas por dia?"
"No mínimo uns 4 ou 5... Senão não me consigo aguentar! Comecei na faculdade... Era muito trabalho..."
Instintivamente surgiram na minha mente os meus habituais conselhos maternais: "Ainda és nova... É um mau hábito... Devias tentar reduzir... Não é saudável..." Eu que comecei a tomar café regularmente bem depois dos 35, eu que hoje em dia só tomo no máximo 2 por dia, eu que em outros tempos discursaria confiante sobre a importância dos hábitos saudáveis... Eu limitei-me a sorrir e ficar calada...
"Não é saudável?" Eu, hoje, simplesmente já não sei o que é certo e o que é errado...
Lá em baixo, tudo pequeno e distante, lindo e insignificante.
Súbita e inesperadamente, sou invadida por uma estranha leveza.
Tranquila e serena, fecho os olhos entregando-me ao embalar suave do balançar do avião...
Saboreio antecipadamente a pausa.
Afasto-me. A minha vida fica a aguardar lá em baixo.
Pausa.
Sou absorvida pelas nuvens brancas, brancas como puro algodão... Distraio-me... Observo-as imaginando rostos, formas, personagens de desenhos animados... Recordo os meus meninos quando pequeninos. Eu e eles. Os três deitados no trampolim observando as nuvens e criando personagens...
Sorrio... O cancro e a masectomia adiada, momentaneamente, desaparecem...
Estou a caminho de Atenas. Hesitámos em marcar, esperando e adiando até ao ultimo dia. Mas a greve dos enfermeiros adiou mais uma vez a minha masectomia e resolvemos aproveitar.
Sim: a minha masectomia. Finalmente consigo escrevê-lo...
A minha primeira data de previsão de cirurgia foi final de julho. Na consulta seguinte, a data de previsão adiou para início de agosto. Na consulta seguinte, adiou para final de agosto... Com a atual greve dos enfermeiros, todas as consultas e cirurgias voltam a ser adiadas... Talvez a minha seja em início de setembro?
Final de julho teria sido perfeito: recuperação durante o verão não interferiria no regresso às aulas dos meus meninos...
Final de agosto ainda seria uma sorte... Início de setembro? Não, não era nada o que eu queria... Mas quem sou eu agora para ainda "querer"? No que toca a "esta situação" absolutamente nada depende de mim...
Para compensar, vamos tirar uns dias de férias! Chamo-lhe "as minhas últimas férias com mamas!" Vamos a Atenas! Vamos e vamos com humor!
Li algures que um nodulo só se consegue detetar ao toque quando já tem pelo menos 1 cm. Li algures que um nodulo de 1 cm poderá já ter mais ou menos 10 anos de existência...
O meu nódulo tem 2 cm, logo a sua existência terá começado há mais de 10 anos...? Ninguém sabe...
Onde estava eu há 10 anos atrás? A nível profissional estava por conta própria, sem horários e com demasiadas responsabilidades. Vivia numa correria constante da qual nunca conseguia desligar. À sobrecarga profissional adicionei, uns anos mais tarde, o inevitável divorcio ficando sozinha com dois filhos pequenos para criar. Ao stress já causado pelo trabalho, adicionei o stress causado pela culpa causada pela falta de tempo... Qual "barata tonta", corria sempre de um lado para o outro sem conseguir saber como ou onde afinal tentava eu chegar...
A vida foi-me acontecendo e eu limitei-me a deixá-la acontecer-me...
Sim, hoje, nos momentos em que eu preciso de encontrar um culpado, eu culpo o stress! Sim, hoje, nos momentos em que eu me sinto perdida, eu culpo o stress fruto da absurda vida moderna para a qual somos arrastadas pelo quotidiano deste mundo atual. Sim, hoje, nos momentos em que eu choro, revejo a dor que envolvia o meu eterno ciclo de corridas sem destino... Corria constantemente, sem ter tempo para parar, sem ter tempo para pensar, sem ter tempo para sentir, sem ter tempo para viver...
Sim, hoje, quando eu olho para trás, eu culpo-me a mim por não ter conseguido ter saído mais cedo desse absurdo ciclo stressante e sem destino!
-"Quem morreu ontem, tinha planos para hoje... Quem morreu esta manhã, tinha planos para hoje à tarde..."
Senti as lágrimas nos olhos: "Bolas! Eu tenho mesmo cancro! Se eu não fizer nada (e por nada penso na horrenda cirurgia que ainda não tem data marcada) não vou ter tempo para realizar os meus planos..."
Levantei-me e fui ao encontro do seu abraço... "Tenho medo... Tenho tanto medo..."
E chorei...
Chorei enroscada no seu abraço forte e sincero. Percebi que ele era a minha força, o meu apoio cá fora para lutar com o que teima em tentar destruir-me por dentro...